1.2. O trabalho na forma capital e sua crise.
(Por Helder Molina)
Capítulo 1, parte2 - de minha dissertação de mestrado em Educação, UFF.
A crise do trabalho é, especificamente, do trabalho explorado na relação capital/trabalho, portanto uma crise capitalista de produção[1]. Os ideólogos do capital, de diferentes matizes e nos diferentes meios de comunicação e de hegemonia cultural, usam essa crise para denunciar como superada e insuficiente a crítica marxista da economia política. Suas denúncias têm como pressuposto que o tempo de trabalho já não desempenha papel relevante na era das redes, dos computadores e dos robôs, argumentado que a redução da relação social em tempo de trabalho abstrato aparece em toda parte.
Essa crise, segundo Marx, é um produto complexo, mas previsível, pois
“o roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se baseia a riqueza atual, torna-se uma base miserável se considerarmos aquela recém desenvolvida e que foi criada pela própria grande indústria. A partir do momento em que o trabalho sob sua forma imediata deixou de ser , necessariamente, a medida de valor de uso”.
O capital, por um lado, “dá vida a todas as capacidades da ciência e da natureza, assim como da combinação social, para fazer com que a criação da riqueza seja relativamente independente do tempo de trabalho a que se refere”. Por outro lado, continua MARX “quer medir estas gigantescas forças sociais assim criadas e aprisioná-las nos limites requeridos para conservar o valor como valor já criado”. (Marx, 1857).
Em meados do século XIX, Marx anunciava a crise da lei de valor como resultante do próprio desenvolvimento da capacidade de produção: a medição da riqueza por meio do tempo de trabalho torna-se uma “base miserável” a partir do momento em que as forças mediatas do trabalho ( a parte do trabalho e do saber acumuladas no curso das gerações) prevalecem sobre as formas imediatas e a criação de riquezas se faz relativamente independente diretamente do tempo utilizado na sua produção.
Quando Gorz escreve que “o tempo de trabalho continua, contudo, sendo a base sobre a qual se distribuem as rendas” , ainda que o tempo de trabalho “tenha deixado de ser a medida da riqueza criada” limita-se a parafrasear Marx, agregando uma confusão: o tempo de trabalho continua sendo socialmente a medida da riqueza criada, mas uma medida cada vez mais miserável e irracional.
A crise da lei do valor não significa o desaparecimento do trabalho no sentido geral do termo. Este é o resultado da evolução atual. A lei do valor torna-se caduca. Exige, de fato, outra economia, na qual nem os preços reflitam o custo do trabalho imediato, cada vez mais marginal, contido nos produtos e nos meios de trabalho, nem o sistema de preços expresse o valor de troca dos produtos.
Os preços serão necessariamente preços políticos, e o sistema de preços o reflexo da escolha pela sociedade de um modelo de consumo de civilização, de vida, insiste Gorz
Diferentemente da maior parte dos críticos superficiais do trabalho e dos profetas de seu desaparecimento, as questões levantadas por André Gorz guardam alguma coerência neste aspecto. Trabalho é uma atividade humano-social pela qual os seres humanos em relação com outros seres humanos estabelecem relações com a natureza e que, mediante os meios e instrumentos de produção, a transformam em bem úteis que os produzem e os reproduzem. Entretanto, o trabalho de que se trata na sociedade realmente existente não é um trabalho livre, amoroso, emancipado, mas um trabalho obrigatório, doloroso, alienado, nas condições de desumanidade real do capital. Mais que um desencantamento do futuro no presente, é a próprio opacidade do presente.
No modo de produção capitalista, o trabalho contido na mercadoria possui duplo caráter, o trabalho concreto, que corresponde à utilidade da mercadoria, seu valor de uso, e às dimensões qualitativas dos diversos trabalhos úteis, é o trabalho abstrato, que corresponde ao valor de troca da mercadoria, independentemente das variações das características particulares dos diversos ofícios.
O conceito de trabalho abstrato refere-se ao dispêndio de energia humana, sem considerar as múltiplas formas em que é empregada. E nessa qualidade de trabalho humano abstrato que o trabalho cria o valor das mercadorias. O modo de existência quantitativo do trabalho é o tempo de trabalho uniforme e indiferenciado, como diria Marx, “como valor de troca, o produto do trabalho mais complexo é uma proporção determinada do produto do trabalho médio simples; trata-se de uma equação com um quantum determinado desse trabalho simples”.
Este conceito de trabalho abstrato, segundo Bensaid (1999:08)
“foi elaborada paralelamente ao de tempo abstrato, que a física e a astronomia empregaram de forma cada vez mais precisa, graças ao desenvolvimento dos instrumentos de medição do tempo. O tempo da física, medido pelos relógios é uma abstração. Medido pelo tempo, o trabalho toma emprestado de seu instrumento de medida um caráter essencial, a abstração”.
O trabalho abstrato, aplicado a um tempo nas condições acima citadas, é um resultado da troca mercantil generalizada. Para Marx, esse processo de abstração do trabalho corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos passam, com facilidade, de um trabalho a outro e o tipo de trabalho determinado resulta indiferente. O trabalho concreto corresponde à utilidade da mercadoria, seu valor de uso, e às características qualitativas dos diversos trabalhos úteis.
Nessa sociedade, continua Marx,
“o trabalho se converteu, não só numa categoria mas na própria realidade, e um meio para criar a riqueza em geral, deixando de estar vinculado aos indivíduos como determinação dentro de uma particularidade”. Nestas condições, “alcançou seu mais alto grau de desenvolvimento na forma de existência mais moderna das sociedades burguesas, onde a abstração da categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho sem mais, ponto de partida da economia moderna, torna-se verdade prática”.
Em outras palavras, ao produzirem as condições para viver, os homens e mulheres constroem as relações sociais, criam as formas de organização dessas relações e alimentam as possibilidades de conservar e ou transformar a vida social existente. Historicamente existem diferentes formas de produzir e reproduzir a vida social. Vivemos em uma forma específica de produzir a vida em sociedade, o capitalismo.
Na formação social capitalista, o trabalho foi transformado em mercadoria. Ou seja, os trabalhadores para sobreviver, trocam a sua capacidade de trabalho por salário. E este, é transformado em mercadorias que representam parte das condições das quais os trabalhadores poderão satisfazer as suas necessidade básicas (e outras tantas), e a variedade de mercadorias criadas pelas mãos humanas parece ter chegado a números quase incalculáveis.
O trabalhador, sujeito fundamental da produção da riqueza social é submetido a um processo progressivo de empobrecimento, e pressionado a incorporar na sua formação, informações que em nada asseguram seu ingresso no mercado de trabalho ou ainda, sua permanência neste. Assim, é impossível e inaceitável confundir essa força com qualquer outro meios existente de se executar tarefas, ainda que os capitalistas insistam em tratar o cavalo, o tear mecânico, o vapor, o motor a combustão, a energia elétrica, o telefone e a força humana como equivalentes, pois a eles o que interessa é apenas o resultado da produção, ou seja, o aumento de suas taxas de lucros.
O trabalho, em sua forma original, passou por séculos de metamorfoses – das formas primitivas de relação com a natureza e de atuação sobre ela como imperativo de sobrevivência, ao artesanato e agricultura, até as corporações de ofício da Idade Média e da transição para a Idade Moderna, aos modernos sistemas industriais de fábricas -, atingindo o complexo sistema de exploração que hoje conhecemos.
Do século XII, período no qual o capitalismo começa a ser gerado, até os dias de hoje, já no século XXI, o trabalho organizou-se, estruturou-se e alcançou níveis de especialização e lucratividade nunca imaginados. Desde a primeira Revolução Industrial, as inovações tecnológicas têm sido recorrentemente consideradas uma ameaça aos empregos, sobretudo em períodos de crise. Se no início os trabalhadores destruíram as máquinas têxteis, assustados com as consequências de sua introdução, hoje esse paradoxo se aprofunda.
Com efeito, ao final do século XX, a humanidade experimentou um extraordinário avanço científico e tecnológico e, sob a hegemonia do capital, houve mais destruição do que bem estar. As contradições provocadas pela sua mundialização (Chesnais, 1998), atingem o conjunto da humanidade. A nova base técnica do trabalho, produto da extraordinária revolução eletrônica, produz robôs, máquinas informatizadas que, como nunca, podem aumentar a produtividade e a qualidade da produção, prescindindo de milhões de cérebros e braços , ao mesmo tempo em que ampliam a exploração e a precarização dos trabalhadores empregados e produzem um contingente absurdo de desempregados.
Os processos de trabalho, nos diferentes ramos da economia, têm sido incessantemente metamorfoseados, buscando sempre uma maior acumulação de capital. Para o trabalhador, que vende sua força de trabalho, essas transformações nunca representaram algum tipo de melhoria ou ganho duradouro e significativo. Pelo contrário, para ele, submetido à lógica de acumulação e exploração do capital, o trabalho está associado a sofrimento e dor, (como no caso do aluna trabalhadora , citado no início deste capítulo, que identifica trabalho com alienação e fardo) porque o trabalhador não é capaz de decidir sobre aquilo que faz nem sobre o destino das mercadorias e valores que produz. O fruto do seu esforço é apropriado por outra pessoa, é apropriado pelo dono da empresa, pelo proprietário dos meios de produção.
O ser humano, em sua existência material, o tempo todo cria necessidades e cria meios para satisfazê-las. Essas necessidades podem ter conteúdos humanizadores, de emancipação do corpo e expansão espiritual. Ou o seu contrário, desumanizadoras, como é própria do consumismo capitalista e do fetichismo da mercadoria. Isso não significa dizer que não haja limites, de várias ordens, na dilatação de determinados meios que respondem a necessidades historicamente criadas. O trabalho dedicado a satisfazer aquelas necessidades humanas não pode se limitar a uma quantidade e a uma forma históricamente dadas.
No entanto, no modo de produção capitalista não é do trabalho livre, emancipado e emancipador que estamos tratando, mas de um trabalho obrigatório, alienado, de um trabalho abstrato. Subsumido ao capital, o trabalho se converteu em um meio de criar riquezas em geral, deixando de estar vinculado aos indivíduos como determinação dentro de uma particularidade. O modo de existência quantitativo do trabalho e o tempo de trabalho uniforme e diferenciado, simples, por assim dizer, despido de toda qualidade.
Sob o regime do capital, o trabalho alienado, a divisão do trabalho, a lei do mercado e a propriedade privada formam uma cadeia que aprisiona e embrutece quem o produz. Não se pode escapar da alienação da relação salarial sem propor e lutar, ao mesmo tempo, pela apropriação social, planificação democrática e solidária da economia e a substituição da divisão do trabalho pelo trabalho livre, associado e emancipado. Em suma, lutar contra o próprio capital e o capitalismo
Segundo Frigotto (2000)
“o que está em crise é este trabalho específico, o trabalho assalariado e esta relação de assalariamento, no qual o tempo de trabalho abstrato é a medida geral da riqueza social. Ao contrário do ufanismo e cinismo das teses do ‘fim da história” para significar a eternização da forma capital de relações sociais e, ao mesmo tempo o fim do proletariado, o capitalismo expõe hoje contradições mais profundas do que nunca. A mais candente é a sua capacidade exponencial de produção de bens – mediado por contínuos revolucionamentos científico-tecnológicos”.
A subordinação do trabalho ao capital efetiva-se hoje de forma mais complexa e heterogênea, intensificando seus ritmos e processos, ampliando o trabalho morto e, ao mesmo tempo, efetivando uma necessária interação entre este e o trabalho vivo.
O trabalho em sua forma capital, e o sistema de capital, o capitalismo, produziu um paradoxo. Numa sociedade de superprodução e de produção do supérfluo, por um lado os seres humanos buscam responder às suas necessidades básicas, socioculturais e ético-políticas e estéticas com um tempo de trabalho produtivo cada vez menor, e por outro, a incapacidade do capital de socializar e democratizar essa produção e de gerar efetivamente tempo livre, de liberdade, de emancipação do corpo e de expansão espírito, de expressão de seus talentos e aptidões criativas. São grandes as dificuldades e os problemas presentes nesse debate. De uma forma geral nos perguntamos se é possível um mercado sem relações mercantis, é possível a superação do regime fordista de produção?
[1] Partimos aqui da concepção Luckacsiana de trabalho criador, para discutir uma de suas formas históricas , o trabalho assalariado sob o modo de produção capitalista.
Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ); Mestre em Educação (UFF); Licenciado e Bacharel em História (UFF). Trabalho com Assessoria Sindical; Formação Política; Produção de Conteúdos; Planejamento; Gestão; Elaboração e Produção de Cadernos de Formação, Apostilas, Conteúdos Didáticos; Produção e Execução de Cursos, Seminários, Palestras, Aulas, Oficinas; Produção de Projetos Sindicais, professorheldermolina@gmail.com - 21 997694933,Facebook: Helder Molina Molina
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