domingo, 7 de dezembro de 2008

GÊNESE DO TRABALHO E IDEOLOGIA DO CAPITAL ETERNO

A GÊNESE DO TRABALHO E A FANTASIA BURGUESA DO CAPITAL ETERNO
(Por Helder Molina

CAPITULO 1, PARTE 1 - DE MINHA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO, UFF.

“ O oposto do retrato que desvela é aquele que oculta. pior ainda, aquele que executa a mais cruel das rapinagens: O roubo de alma,. contava o sertanista Orlando Villas boas que, entre nossos indígenas, o roubo de alma era a mais temida entre as maldades cometidas pelos espíritos da floresta. Ela extraía do guerreiro sua principal arma: Sua identidade. Para contorná-la, toda a aldeia se enlaçava em torno do corpo esvaziado, num ritual de rememoração em que a vida, as crenças e os sentimentos da vítima eram repassados ininterruptamente, até devolver-lhe a essência subtraída.” (Frei Beto, o Globo, 27/02/2003)


Nas atividades profissionais de formação política e sindical, a que estamos inseridos como formadores da Rede Nacional de Formação da CUT, quando reunimos os(as) trabalhadores(es) para um evento formativo, seja uma oficina, um seminário, um curso, uma aula, uma reunião, etc, fazemos uma dinâmica de apresentação em que basicamente cada um dos participantes se apresenta, fala um pouco da sua origem, trajetória de vida, gostos, expectativas e projetos, e diz o que o identifica com aquele grupo, o que, ali naquele espaço, nos torna iguais.
A palavra trabalho, trabalhador e classe trabalhadora são as maiores referências, tanto como atividade profissional, lugar no mundo, definição ético-valorativa e sentido de pertencimento social.
Segundo Jacques(1997) a identidade é uma expressão subjetiva e se refere a tudo aquilo que é vivenciado como eu em resposta à pergunta “quem és ?” sendo apreendida através da representação de si mesmo. Para Costa ( 1989) constitui-se como um sistema de representações diversas. Ou como “múltiplos personagens que ora se conservam, ora se sucedem, ora coexistem, ora se alternam, mas com aparência unívoca e estável” Ciampa, (1987) etimologia da palavra remete a Ídem, do latim, o mesmo.
No entanto, ainda se referenciando em Jacques, na literatura sociológica, epistemológica, e histórico antropológica, ela implica a idéia de construção, processualidade, metamorfose, um constante “estar sendo”, embora se apresente como “ser”. Refere-se a movimentos que dizem respeito à singularidade humana quanto a particularidade de grupos, segmentos, estratos, classes, culturas.
As profundas metamorfoses operadas no modo de produção capitalista durante o século XX, e particularmente no final deste, no sentido de superação de sua crise e de ampliação e manutenção de sua dominação, têm na destruição da identidade do trabalhador e da sua etimologia sócio histórico-cultural – o trabalho – uma de suas armas mais eficazes e poderosas.
Buscando pensar e responder criticamente a este problema é que neste capítulo nos desafiamos a fazer uma análise da categoria trabalho, resgatando os seus sentidos ontológico e histórico, sua centralidade na produção dos seres humanos e da vida material, e problematizar o que se convencionou denominar de “crise do trabalho assalariado”, crise da sociedade do emprego” ou ainda de “crise da sociedade industrial” tanto em literaturas de corte ideológico liberal e burguês, quanto nas análise de respeitáveis autores de filiação à esquerda e que se reivindicam críticos do capital e do capitalismo.


1.1. – O sentido emancipatório do trabalho e sua centralidade na vida social
Existe, atualmente, uma abundante literatura crítica que trata das formas históricas de subordinação do trabalho ao capital (taylorismo, fordismo, neo-fordismo, pós-fordismo ou produção/acumulação flexível) e das lutas da classe trabalhadora no enfrentamento do capitalismo, dentre elas citamos Hirata, Prado, Harvey, Corriat, Catani Antunes, Mattoso, Tumolo, Rummert, Frigotto. Aqui, em sua positividade, o trabalho pode ser sentido e entendido como criação, prazer, emancipação;
“...na verdade...eu tive que abandonar a escola, para sobreviver. Era estudar ou trabalhar. Resolvi voltar a estudar. Eu sobrevivo pintando, aprendi com a vida, faço isso desde menino, fazendo, sem nenhuma escola de arte, desenho ou pintura. Dizem que sou auto-didata. Sei que o meu trabalho traz prazer para as pessoas que olham, e por isso também me dá prazer! Aquelas telas pintadas e penduradas são mais que uma tela, na verdade são viagens que faço por dentro de minha alma, retirando o que há de bonito na minha imaginação.
Quando eu pinto sei que estou criando, livremente, e não existe fronteiras ou limites para criar. As cores combinadas inventam novas cores, para se criar uma paisagem, invento, primeiro várias outras paisagens, até que fica definido qual será, enfim, a pintura final. E se eu parar um pouco, e recomeçar noutro dia, já me vem outra idéia sobre a mesma pintura do dia anterior. É um barato criar e desafiar a gente mesmo. Todo trabalho deveria ser assim...mas não é!” (Depoimento de um outro aluno/trabalhador, do Programa Integrar/RJ, de Ensino Médio, da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT)[1]

Ou em sua negatividade, sentido e entendido como fardo, obrigação, maldição:
“O que é o trabalho? Ah, professor... porque é que eu trabalho? quer que eu seja sincero? Mesmo? Se tenho prazer? Prazer? Nenhum, como vou ter prazer com uma coisa que me torna a vida pesada? Para mim, trabalhar significa carregar uma enorme cruz, um pesadelo, como uma penitência que tenho que pagar, todos os dias. Já saio de casa cansada, e repito as tarefas por obrigação, por necessidade, por causa de uma merreca de salário. O que ganho é indigno, que nem consigo dar comida e escola para meus filhos.
A aporrinhação é insuportável. Tudo já vem pronto, só faço executar o que os outros mandam. Fico contando as horas passarem, e quando chega o momento de ir embora, é como se fosse uma cangalha que retiro das costas, bato o ponto... saio correndo, ufa!!. E chego em casa ainda faço comida para filhos e marido, e lavo roupa, e arrumo casa de noite. Fico só o bagaço.
(Depoimento de uma aluna/trabalhadora do Programa Integrar/RJ, de Ensino Médio, da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT).

Estes depoimentos sobre o trabalho são repetidos por milhões de trabalhadores e trabalhadoras, todos os dias, no mundo todo. No trabalho, ou na apropriação dele e do produto dele, estão contidas enormes e paradoxais contradições. Os sentidos contraditórios do trabalho, no primeiro caso expressando sua negatividade, como peso, penitência, sacrifício, obrigação, alienação, exploração, opressão, cativeiro mesmo. No segundo, exprimindo sua positividade, sua face emancipatória, como fonte de criatividade, realização, prazer. Muito mais que a busca do sustento material, lugar da liberdade.
Afinal, o trabalho é isso? Ou aquilo? É só isso, ou só aquilo? É natural que seja assim? Qual a relação dessa afirmação com as relações econômicas de produção, as engrenagens sociais, e o processo da história, enfim? É sobre isso que queremos refletir. O trabalho, a alienação, condição humana de permanente busca de ser feliz e ter na emancipação pelo trabalho sua liberdade plena.
Em dado momento da presença humana na terra, ainda não delimitado pelos estudiosos da Arqueologia, da História, da Antropologia, e mesmo da Biologia, o ser humano - ou seu ancestral -, motivado por alguma dificuldade objetiva à sua relação com o meio que o circundava
“observou demoradamente a natureza, escolheu um ponto determinado – uma árvore, uma curva de rio, um animal, uma pedra -, mentalmente interrogou-se sobre como poderia transforma-lo de uma maneira a conseguir sanar seu problema e, após elaborar um plano mental, debruçou-se sobre aquela parcela da natureza e transformou-a segundo sua necessidade”.(Gurgel, 2000)

Esta relação mediadora entre o homem e natureza imprime uma atividade intencional, orientada pela inteligência e produto, unicamente, da espécie humana: O trabalho. Atividade que não se limita apenas a transformar o material sobre o qual o homem decide operar, mas que busca imprimir nele o projeto que, conscientemente, tem como objetivo. A partir do instante em que o trabalho deixou de ser uma mera atividade instintiva, passando a ser o resultado de um plano previamente elaborado, ali teve início a espécie humana, com sua capacidade original e única de transformar a realidade de acordo com seus desejos.
De lá para cá, ela vem criando e recriando não somente o mundo, mas também a sua própria forma de ser e de se comportar. Cada ser humano é, portanto, proprietário de uma parte da força de trabalho total da comunidade, da sociedade e da espécie. Força essa que se inclui numa categoria especial, diferente de todas as outras, pelo simples fato de ser humana ( é um recurso exclusivo de nossa espécie) .
O trabalho é a atividade essencial do homem, uma categoria constitutiva da vida humana, através da qual se põe em contato com sua exterioridade e com os outros, com os quais e para os quais realiza esta tarefa. Ao dominar e transformar a natureza pelo trabalho, e a partir daí construir sua própria vida,
“O homem foi definido como o animal que constrói seus próprios utensílios. É correto, mas é preciso acrescentar que construir e usar instrumentos implica necessariamente, como pressuposto imprescindível para o sucesso do trabalho, que o homem tenha domínio sobre si mesmo. Esse também é um momento do salto a que nos referimos, da saída no homem da existência animalesca. Também sob este aspecto o trabalho se revela como o instrumento da auto criação do homem como homem. Com sua auto realização, que também implica, obviamente, nele mesmo um retrocesso das barreiras naturais, embora jamais um completo desaparecimento delas, ele ingressa num novo ser, auto fundado: o ser social (Luckács , 1981, P.54)

Luckács diz que

“todas as outras categorias desta forma de ser (ser social) têm, essencialmente, já um caráter social; suas propriedades e seus modos de operar somente se desdobram no ser social já constituído; quaisquer manifestações dela, ainda que sejam muito primitiva, pressupõe o salto como já acontecido”. (Luckács, 1981, p.13 e 14).

No sentido Lukácsiano, é o trabalho que realiza o salto ontológico entre a esfera animal (orgânica) e a social . Esta é a única categoria do ser social que tem um caráter eminentemente intermediário, isto é, ele constitui o móvel da inter-relação material entre homem e natureza. A categoria trabalho é a atividade que transforma um produto natural em um objeto social, uma mediação entre o humano e a natureza, e através da qual se processa a socialização dos seres humanos. O trabalho, portanto, é o elemento fundante e estruturante da materialidade humano-social e mediador da vida social do ser.
Para se ter a dimensão do ser do homem é necessário que o analise em sua processualidade concreta, real, na produção e reprodução de sua vida material. Nela reside a diferença fundante entre os seres humanos e a natureza. Como e através de que o ser humano assegura sua existência físico-material?
O trabalho possibilita transformar energias naturais em energias socializadas, possibilitando, assim, a auto-reprodução do indivíduo e das espécies por meio do desenvolvimento e da diferenciação das necessidades, na medida em que as necessidades humanas são determinadas historicamente, o trabalho dedicado a satisfazê-las não pode se limitar a uma quantidade e a uma forma histórica dada.
Nos Manuscritos de 1848, número 22, Marx assim define os sentidos do trabalho na produção do ser humano e na produção da vida social:
“suponhamos que produzimos os seres humanos: em relação a si próprio e ao outro. 1) Em minha produção, eu realizaria minha individualidade, minha particularidade. Trabalhando, experimento alegria de manifestar a individualidade de minha vida e, contemplando o objeto produzido, alegro-me ao reconhecer minha própria pessoa como um potencial que se realizou, como algo invisível, tangível, objetivo.2) O uso que você faça do que produzi e o prazer que obtenha, dar-me-ia alegria espiritual de satisfazer, através do meu trabalho, uma necessidade humana, de contribuir para a realização da natureza humana e de aportar ao outro o que lhe é necessário. 3) Eu teria consciência de atuar como mediador entre você e o gênero humano , de ser experimentado e reconhecido por você como um complemento de seu próprio ser e como parte indispensável de você mesmo, de ser acolhido em seu espírito e em seu amor. 4) Teria a alegria de que o que a minha vida produz sirva para a realização da sua vida, de cumprir na minha atividade particular a universalidade de minha natureza, de minha sociabilidade humana. Nossas produções seriam como espelhos em que nossos seres se irradiam um ao outro”(Marx, 1844,22)

[1] Estes são dois exemplos contrastantes de dezenas de depoimentos originais, que recolhi e guardei, de alunos trabalhadores do Programa Integrar de Ensino Fundamental do Estado do Rio de Janeiro que participavam de uma Oficina Pedagógica do Programa Integrar. Neste caso eles foram solicitados a escreverem seu sentimento e percepção sobre o trabalho no mundo atual. O tema da oficina era “Globalização, trabalho e reestruturação produtiva”, em setembro de 1999, no núcleo de Niterói.

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