domingo, 7 de dezembro de 2008

MERCADORIA, FETICHE, ESPETÁCULO DO CONSUMO

2. 1. – A eternização do presente, o fetiche da mercadoria e o espetáculo do consumo
(Helder Molina)

Capítulo 2, parte 2, de minha dissertação de Mestrado em Educação - UFF

A hegemonia do capital no final do século XX e início do XXI se consolidou por via de fenômenos complexos e contraditórios, mas complementares. Esses fenômenos se distribuem em vários esferas, numa totalidade que tem sua gênese na materialidade produtiva e reprodutiva do capital e do capitalismo.
Portanto, relacionamos os fenômenos específicos e os abrangentes da totalidade em movimento; no caso, o modo de produção capitalista em seu estágio atual de desenvolvimento, com hegemonia de sua esfera econômico-financeira e da ressignificação da mercadoria nessa atual hegemonia, numa tentativa de compreender a essência dele em acordo com a argumentação de Jameson (2001, 14) de que
“a economia acabou por coincidir com a cultura, fazendo com que tudo, inclusive a produção de mercadorias e a alta especulação financeira, se tornasse cultural, enquanto que a cultura tornou-se profundamente econômica, e igualmente orientada para a produção de mercadorias.”
As esferas cultural, ideológica, ética e estética é o que buscaremos analisar aqui. No plano ético e cultural, o neoliberalismo ocupou-se de engendrar novos códigos culturais e valores simbólicos, baseados no mercado, na mercadoria e na mercantilização de todas as relações entre os homens. personificando as coisas e coisificando as pessoas.
Lopes (2001) afirmam existirem contemporaneamente duas idéias-espetáculo[1] hegemonizaram (e ainda hegemonizam) os anos presentes, de grande força e apelo social com que a mídia nos bombardeia sistematicamente:
1) O “presentismo”, que consiste em admitir que tudo que hoje ocorre nada tem a ver com o passado. O senso comum vigora, predomina e propaga– com exclamações eventuais – a crença de que o atual se explica como coisa nova, inédita e inaudita, e não relacionada com a História, com raízes suspensas no ar.
2) O “pensamento único”, mais difuso que o “presentismo”, que é a via escolhida pelos “novos liberais”. Sua ideologia – visão do mundo social - e suas propostas políticas buscam nos convencer que é a única possível, o mundo é um grande mercado, lugar de negócios.
Esse inquietante tempo desenraizado da história, é questionado nas palavras de Saramago (2002)[2], porque, para a lógica da descartabilidadade e do supérfluo da atual etapa da lógica capitalista
“...existência do presente é o que basta, o sentido de viver não merece reflexão mais séria. Aos mais pobres, com ênfase aos da periferia do capitalismo, da América Latina em particular, o sentido da vida é consumir, sem distinguir o que é preciso do que é supérfluo; aceitar o desemprego como natural ou como fatalidade, como punição por sua baixa qualificação ou escolarização; pensar a violência e a criminalidade como algo estranho à estrutura social e econômica; modular o corpo e individualizar o espírito; pagar juros altos e taxas bancárias cem vezes maiores que a remuneração da poupança; aceitar a desigualdade como natural, com desígnio do destino e dificilmente alterável, ou mesmo imutável.”

Para Rummert(2001), a hegemonia neoliberal produziu o que ela denomina de um novo projeto identificatório do capital que cria suas próprias categorias explicativas da realidade, ressignificando e recodificando novos padrões regulatórios para a vida social e pessoal. Esse novo projeto identicatório neoliberal , segundo essa autora, se constitui de uma excessiva ênfase no indivíduo e no individualismo, onde cada indivíduo pode agir de acordo com seus desejos e potencialidades, e vencer é seu único limite. Nestas condições rompem-se quaisquer compromissos coletivos ou associativos, e os conflitos passam a ser resolvidos nas esferas pessoais e interpessoais.
Como vencer é uma questão individual, o estímulo à competição e à atomização social destrói laços de solidariedade e tecidos de identidade de classe dos trabalhadores, inexistindo a sociedade, e sim os indivíduos competitivos entre si. Predomina uma supervalorização da diferença e da busca da superioridade individual,
Ainda na concepção de Rummert, outro ítem desse projeto de identidade forjado ideologicamente pelo capital é a construção simbólica de “culpados” pelas diversas formas de exclusão e pelas carências vividas pela sociedade. Ao enfatizar a política deliberada de desgaste e negatividade da esfera pública e suas ações, e de culpabilização das instituições públicas, do Estado e de seus funcionários como responsáveis pela falência das políticas e do atendimento aos usuários, o capital afirma uma suposta positividade de tudo que é privado, estimulando assim as privatizações do patrimônio público, das políticas de interesses sociais e a própria privatização da vida e das relações sociais.
Aqui se apresentam com força as teses da apocalipse neoliberal: do fim da história, fim da luta de classes, fim das ideologias, fim do trabalho e de tudo que seja coletivo e que cause conflito Este eficaz mecanismo de regulação social procura se sustentar no ideológico discurso de combate às ideologias e à ideologização dos movimentos sociais, procura descaracterizar as reivindicações e destruir as conquistas sociais produzidas pelas lutas coletivas e organizadas dos trabalhadores.
Esta culpabilização é também transferida aos trabalhadores desempregados e aos demais setores sociais excluidos. Eles são os responsáveis por não terem direitos humanos e sociais respeitados, culpados por não terem educação, não terem emprego e por estarem marginalizados do consumo e da vida na sociedade de mercado.
Há ainda, segundo a autora que tomamos como referência, um hiperdimensionamento do valor do mérito segundo a lógica do mercado, onde o progresso material é uma questão de competência, da vitória do bem contra o mal, do forte e capaz contra o fraco e medíocre. Que considera natural a opulência, a miséria, a desigualdade.
Para ilustrar tudo isso, mostramos aqui um fragmento das palavras de Roberto Campos(1988), um dos principais ideólogos do liberalismo no Brasil, em uma de suas diretas defesas do liberalismo e desigualdade como natural nos seres humanos e nas relações sociais.
“Obviamente, o mundo é desigual. Há quem nasce inteligente e há quem nasce burro. Há quem nasce atleta e há quem nasce aleijado. O mundo se compões de empreendedores e de preguiçosos, de fortes e fracos, de pequenas e grandes empresas. Uns morrem cedo, no primor da vida; outros se arrastam, criminosamente, às custas da caridade alheia ou do Estado, por uma longa existência inútil. Há uma desigualdade fundamental na natureza humana, na condição das coisas(...)”. ( Campos, 1998:18)
Como o presente assume um caráter do sempre, o “presentismo” tem caráter hedonista, de culto à competição desenfreada, e questionamento de valores que possam propiciar uma nova solidariedade. Evidentemente, a perplexidade diante da velocidade das mutações apresentadas ao tempo presente são preponderantes. A dificuldade de reflexão encontra seu complemento na anestesia inoculada pela cultura do entretenimento ou explode em manifestações como a violência ao vazio do sentido.
Nesse mosaico de fragmentação e descontinuidade, fica naturalizada a dispersão e a descontinuidade dos processos vividos na sociedade e dos projetos, sejam individuais ou coletivos, de inserção da vida socioeconômica.
De fato, o resultado das políticas neoliberais tem sido o surgimento, Conforme Santos (1999) de um quadro de “fascismo social” que se explicita, segundo este autor, pelas formas do Apartheid Social, do Estado paralelo, fascismo paraestatal, fascismo contratual, fascismo da insegurança e o fascismo financeiro.
A fragilização do trabalhador é sobretudo ampliada pelo fascismo da insegurança. Este, como nos mostra Boaventura Santos, P. 54-55, se manifesta, de forma absurda, em
“grupos sociais vulnerabilizados pela precariedade do trabalho que manifestam elevados níveis de ansiedade e insegurança quanto ao presente e ao futuro, de modo a fazer baixar o horizonte de expectativas e a cria a disponibilidade para suportar grandes encargos, de modo a obter reduçòes mínimas dos riscos e da insegurança”
Da precarização das relações, flexibilização de valores e de direitos , descartabilidade ética e moral , empregabilidade sem emprego. O permanente desafio, oferecido aos indivíduos, de viverem jogos competitivos: vencer é uma questão de competência pessoal, uma vitória da persistência pessoal, do treinamento exaustivo e da disciplina competitiva. A lógica mercantil e a racionalização econômica são apresentadas como totalizadoras da realidade, únicas capazes de superar todos os conflitos e as contradições, negando o aporte político que rege as relações sociais.
O poder espetacular da sociedade de mercado e seu mundo de aparências enganadoras é um fenômeno universal. Porém, rejeitamos as teses da assim chamada Pós modernidade, para as quais vivemos numa situação de ausência de paradigmas, de uma realidade fragmentada e fragmentária, inexistindo a realidade em totalidade e sem seu lugar uma vida em partículas, o tempo do espetáculo, a supremacia da imagem, o império do instantâneo, a ética da simulação dando coerência à definição de Karel Kosik (1998) de que “o mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. A essência se manifesta do fenômeno, Mas só de modo inadequado, parcial. Ou apenas sob certos ângulos e aspectos”. que encontra estupenda força nos países periféricos do capitalismo, com maiores desigualdades sociais e profundo atraso educacional.
A mercadoria se transforma num fetiche, e sua utilidade é tornada convincente pela propaganda. Vemos e acreditamos se o que se reflete no espelho da propaganda, nela, o verdadeiro se torna desprezado e o falso vira útil e pode ser seguido. Nela se fazem as consciências dos homens e mulheres; magicamente o fenômeno se transforma em real.
Para Konder,
Vivemos a sociedade que forjou um instrumental de hegemonia ideológica, que se revela mais potentes que as religiões do passado, mais do que a escrita depositada nas estantes, com seu caráter patrimonial-estático impossibilitada de competir com o dinamismo imagético-sonoro-tecnológico contemporâneo. Essa dominação cultural faz renascer das cinzas costumes esquecidos ou, se necessário, o resignificam e o rearticulam a novas crenças e novos códigos éticos e morais. Dela sai o que julgamos belo e feio, certo e errado.”





[1] Tomei por coerente e extremamente pertinente ao contexto do meu trabalho, as reflexões de Luis Carlos Lopes, professor de Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense-UFF, que atualmente desenvolve pesquisas e estudos analisando a produção da subjetividade humana numa sociedade dominada pelos signos da propaganda e do consumo, da mercantilização das relações sociais, do fetiche do tempo presente e do autoritarismo do pensamento único. Algumas de suas idéias estão no artigo, “Sociedade Midiática”, publicado pelo Público, Jornal do Sintrasef – Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal no Rio de Janeiro, em Maio de 2000.
[2] José Saramago produziu uma memorável crônica de saudação aos participantes do III Fórum Social Mundial, realizado em janeiro de 2002, onde conclama os seres humanos indignados com a miserabilidade produzida pelo capitalismo, a lutarem pela reconstrução, e preservação onde ainda existam, dos laços de ética, justiça e solidariedade, condição única para garantia do futuro da humanidade. O manifesto “Aos que lutam no tempo presente”, de José Saramago, foi publicado em agosto de 2002, na Internet– Rede Brasileira de Economia Solidária.

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