domingo, 7 de dezembro de 2008

FLAGELO CAPITALISTA E FUTURO DO TRABALHO

1.4.2 – O flagelo capitalista e o futuro do trabalho

( Helder Molina)
Capítulo 1, parte 4, de minha dissertação de Mestrado em Educação, na UFF

Outras questões estão envolvidas neste debate, que envolvem a previdência e a seguridade social, idade da aposentadoria, redução da quantidade de horas da jornada e de dias da semana de trabalho ( sem redução de salários), pagamento de horas extras, adequação dos horários ou ritmos escolares, trabalho dominical, e a luta por dividir tempo de trabalho em tempo necessário e sobretrabalho são atuais.
Mas esse tempo abstrato médio (jornada), estabelecido pelo jogo do mercado, reflete de forma cada vez pior a heterogeneidade e a complexidade de um trabalho socializado, no qual parte de trabalho morto ( o trabalho das gerações precedentes acumulado de forma de técnicas e saberes) é cada vez mais importante.
O custo social do trabalho se afasta, cada vez mais, da medida mercantil de seu custo imediato. Gorz propõe, nesse sentido, a noção de “composição orgânica do trabalho”, expressando a relação entre trabalho vivo e trabalho morto, no próprio processo de trabalho. Realça, assim um aspecto particular da tendência geral de evolução orgânica do capital. Contudo, o trabalho abstrato não desaparece pois, movido por sua lógica de acumulação de taxas de lucro, o capital necessita cada vêz mais de trabalho vivo, tal qual o vampiro necessita de sangue, ainda que deva mobilizar uma parte crescente de trabalho morto para transforma-lo em valor.
A redução de parte do trabalho industrial diretamente produtivo em relação à soma do trabalho coletivo e ao desenvolvimento dos serviços não significa, portanto, fim do trabalho, mas sim uma profunda modificação histórica na sua composição orgânica. Nessa nova composição histórica, porém, os ganhos de produtividade obtidos nos setores de produção de bens de produção não são facilmente transferíveis aos setores de serviços, a não ser que estes serviços, ainda que públicos, sejam disponibilizados socialmente segundo uma lógica mercadológica estrita. Aos possuídos, os serviços de melhor qualidade, privatizados e produzindo lucros para o capital; aos despossuídos, a lógica caritativa e compensatória mínima , por conta do Estado.
Gorz insiste que no ato de trabalhar a atividade prático-sensorial fica reduzida a uma pobreza extrema, e que o trabalho já não é uma atividade de apropriação do mundo objetivo. Para ele, a sociedade do trabalho converteu-se em um fantasma sobrevivendo os estertores de sua extinção. A pergunta que agora se coloca, para além da renúncia política de lutar contra o desemprego, como propõe este autor, é o que há, então a fazer?
O advento do trabalho assalariado determina as modalidade de não trabalho. Como sabemos, com o surgimento do capital, do modo de produção capitalista e, posteriormente do capitalismo as palavras ganham novo significado. As categorias, e suas mudanças, são construídas historicamente, e acompanham os processos sociais. O repouso corresponde, mais ou menos, ao tempo necessário para recomposição das energias humanas da força de trabalho. Mas a sociedade do lucro e o fetiche da mercadoria confundem repouso, tempo livre e ócio, mistura-os, integrando a cultura, o lazer e o ócio ao ritual do intercâmbio mercantil. Diferente do tempo livre, o tempo de ócio, sem o aprisionamento mercantil, seria o da fluição, o “tempo emancipado”.
Sob o regime do capital, o trabalho alienado, a divisão social do trabalho, a lei do mercado, o fetiche da mercadoria, a reificação das coisas, e a propriedade privada formam um quadro terrivelmente coerente. Não se pode escapar da alienação da relação salarial sem postular, ao mesmo tempo, a questão da apropriação social, da planificação democrática da economia e da revogação da divisão do trabalho.
Caberia indagar, como Arendt (1988), como seria uma sociedade de trabalhadores sem trabalho? Se “o advento da automatização esvaziará, provavelmente em décadas, as fábricas e liberará a humanidade de sua carga mais antiga e mais natural, a servidão perante a necessidade”.Se assim for, estará em jogo “um aspecto fundamental da condição humana” mas, prossegue Arendt
“ isso acontece nos contos de fadas, nos quais o desejo resulta em um engano. Uma sociedade de trabalhadores vai se livrar das cadeias do trabalho, e esta sociedade não sabe nada das atividades elevadas e enriquecedoras para as quais valeria a pena ganhar a liberdade”.



Uma grande indagação ao futuro... ou ao presente?

“Que a emancipação do trabalho na época moderna, não só fracasse na hora de instaurar uma era de liberdade universal, mas conduza, pelo contrario, toda a humanidade a se inclinar pela primeira vez sob o jugo da necessidade”(Arendt, 1988)

Eis uma possibilidade perigosa que Marx se deu conta quando afirmava que o objetivo da revolução não poderia ser a emancipação, já realizada, dos trabalhadores e que devia consistir na emancipação do homem do trabalho. Considerar somente a dimensão antropológica do trabalho, abstraindo seu caráter historicamente determinado ou considerá-lo somente em seu caráter alienado e alienante, abstraindo sua potencialidade criadores, parece-nos dois extremos problemáticos.
As dimensões antropológicas e históricas do trabalho estão estreitamente combinadas. Ainda que a alienação domine o trabalho assalariado há, concomitantemente, um processo de socialização. Não se trata de negar essa contradição, mas de se instalar nela para enfrenta-la. Por trás do trabalho imposto persiste, ainda que de forma débil, surda, cega, essa necessidade do possível, que diferencia a atividade humana da simples existência vegetativa ou animalesca.
Um projeto estratégico de emancipação humana da maldição do trabalho sob o capital tem no horizonte perspectivas generosas de Marx e Engels em “A Ideologia Alemã”:
“Desde o momento em que o trabalho começa a ser repartido, cada um tem sua esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe vem imposta e da qual não pode fugir; ser caçador, pescador ou pastor ou crítico, e deve continuar sendo se não quiser perder os meios de sua existência; enquanto que na sociedade comunista, onde cada não tem uma esfera exclusiva.
Ainda que possa aperfeiçoar-se no ramo que deseje, a sociedade regulamenta a produção geral, o que cria a possibilidade para mim de fazer hoje esta coisa, amanha outra, caçar pela manha, pescar à tarde, cuidar do gado ao entardecer, fazer crítica depois do jantar , segundo minhas vontades, sem me converter, por isso, em caçador, pescador ou crítico”

Olhando assim, parecemos tomados de romantismo, alimentados pela d utopia. A escrupulosa e radical utopia que povoa a produção intelectual de Marx, como que fogo a galvanizar o sentido de ser da luta contra o capitalismo e suas formas de opressão, encarceramento material e espiritual, e exploração. Diante dessa prostração de uma crescente rede de intelectuais e de militantes sindicais, desenvolve-se a perversa concepção de desvincular o trabalho dos direitos, ou, do direito a ter direitos. Uma teoria sobre o cansaço provocado nos trabalhadores rumo ao improvável, como que numa corrida sem ponto de chegada entre estes e o emprego.
Vejamos a complexidade da teia que tece o tecido atual do mundo do trabalho, seguindo os argumentos de Gorz, o principal expoente da concepção contra a qual nos posicionamos. Sendo coerente com este autor, diríamos que, ainda que não se admita a idéia do fim do trabalho, pode-se indagar sua transformação, no sentido de uma redução dos postos de trabalho estáveis e por toda vida, em favor de uma flexível alternância de empregos.
O uso do trabalho tende a converter-se em uma sequência de trabalhos intermitentes, empregos temporários, esperas, conversões e reconversões, tornando permanente o temporário, e estável a instabilidade.O salário se converteria em um salário da disponibilidade, pago tanto durante os períodos de espera de emprego, como durante o próprio emprego. Tudo flexível, tudo ao sabor da ondulações, típicas de um tempo provisório. Quem garantiria um pacto entre o capital e o trabalho em torno de uma pauta dessas?
Em verdade, existe uma idéia fixa entre os defensores do paradigma de acumulação flexível e os teóricos do fim do trabalho de que a ideologia do pleno emprego salarial é o maior obstáculo à resolução da crise atual do capital...e do trabalho. Uma sociedade em que se tivesse a obrigação, ou um direito de cidadania, como diria Rifkin (1997), à garantia de uma renda social primária distribuída aos mais pobres e aos desempregados, apenas aumentaria as necessidades de se buscar um emprego assalariado.
A questão se complexifica ainda mais quando se aventura num tortuoso exercício de quantificação de direitos. Gorz rejeita a proposta de uma renda de subsistência suficiente. Prudentemente pergunta o que determina a suficiência: um salário mínimo interprofissional? Ajuda social complementar?
Ou as chamadas políticas de renda mínima, tão em voga nos governos neoliberais dos anos 90, e que são advogados por governos de corte reformista e popular?
As fórmulas quantificadoras de um direito que deveria ser universal, que substitua os mínimos sociais dentro de uma lógica liberal conduzem a uma institucionalização e permanência de uma nova legião daquilo que Casttel (1997) denomina de “sobrantes”[1] do capital, amparados por políticas de renda mínima de inserção precarizada, como compensação ao fato de que dificilmente serão reintegrados ao mercado de trabalho, atenuando o fenômeno do desemprego.
Caberia sublinhar a falta de sentido humano emancipatório de um sistema que realiza economia de tempo de trabalho sem precedentes, mas que converte o tempo assim liberado em um flagelo social, porque não se propõe a reparti-lo, nem repartir as riquezas produzidas ou produtivas, nem reconhece o valor intrínsico do tempo livre e do tempo para atividades superiores.
Os “sobrantes” dessa lógica perversa, sem um horizonte utópico ou sem as perspectivas concretas de combate contra ela, tenderiam a desanimar de suas lutas imediatas pelo emprego capitalista, e, na sua falta, lutariam pelo direito de uma renda mínima , com a ilusão de que a alcançariam sem que para isso houvesse uma correlação de forças que pudesse fazer com que ela se aproxime ao nível de um mínimo socialmente concebível, a saber, o direito ao trabalho e aos direitos dele advindo.
A oposição entre o direito a uma renda e o direito ao emprego torna-se ironicamente perversa quando se busca explicar que o problema já não é de exploração, mas sim de exclusão, como se segunda não fosse produto da primeira, e como se ambas não fossem resultado da própria lógica salarial imposta pelo capital em sua relação com o trabalho.
Esse argumento de que o mercado não tem nada a ver com isso, e que ao Estado compete políticas de alívio da exclusão, provocados pela competição “natural” dos agentes econômicos são sustentados por uma centena de profissionais de Marketing, economistas, administradores, psicólogos e pedagogos que assessoram o capital e dão consultoria às empresas, na nova modalidade de pedagogia do capital e de domesticação do trabalho, chamadas pós modernamente de “gestão estratégica das empresas e empreendimentos”, “gestão de pessoas”, “gestão de recursos humanos”, “gestão por competências” ou “gestão da empregabilidade”, para não deixar de citar nomes, Idalberto Chiavennato, Jeremy Rifkin, Peter Brucker, Domênico de Masi, José Pastore, etc.
No próximo capítulo, procuraremos mostrar a função orgânica dessa nova ideologia do capital, o neoliberalismo, seus pressupostos teóricos, tanto econômicos, políticicos, quanto éticos e culturais e como seus intelectuais orgânicos (coletivos e/ou individuais) alguns dos quais citados acima, a propagam e como sua hegemonia se espraia pelo tecido social e impregna corações e mentes das populações mais pobres do planeta.
[1] Há uma razoável divergência entre os autores em relação ao termo “excluídos” “excluídos socialmente” ou “exclusão social”. Castell utiliza o conceito “sobrantes”, para designar a imensa parcela da população mundial que se encontra descartada pelo capital e seu sistema.. No capítulo 2 deste trabalho buscaremos analisar estas questões, cotejando estes termos com a própria história e lógica de reprodução do modo de produção capitalista – como herança da lógica escravocrata e da mundialização do capital e do mercado.

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